Enviado por Wagner de Melo, São Paulo-Capital
21 fevereiro, 2012

Refúgio da Visão Perdida

Por Pedro Gomes

Lamentos de um glaucomatoso

1ª Parte: Balanço de Perdas

Perdi as cores e os amores,
Ficaram as dores e os temores.
Do dia e da noite perdi as imagens,
Da Terra apagada perdi as paisagens.
Só as joias estelares a memória consegue resgatar
Do áureo tesouro que a retina lograra retratar.

Adeus viagens a esmo,
O peregrino de asas cortadas,
Pés de chumbo e mãos atadas
Encarcerou-se em si mesmo.

Adeus montes e vales, ruas e cidades,
Que tudo caiba no meu cofre de saudades
Não esperem por mim Terra e Mares
Naufraguei em meus pesares.

Perdi os rostos, o meu próprio rosto,
Ficou somente o desgosto
De me sentir desconhecido
Tanto quanto antes de haver nascido.

Perdi os livros, seus enredos, suas lições e emoções,
E cada página perdida ficará como uma ferida,
Sempre aberta por toda vida.

Olhos criados para luz do mundo
Renderam-se às trevas, ao pacto traído
Em troca oferecem um mergulho profundo
Nas turvas águas da vida sem sentido.

Perdi o palco dos teatros, os astros das telas,
Os heróis, os vilões e as mulheres belas.
Sobrou-me apenas o espetáculo da realidade
Cujos dramas nos esmagam com a sua verdade

Perdi a máquina muito amada
Que nas ruas e na estrada
Mesmo nas mãos de um homem idoso
Era um engenho prodigioso.

Perdi o convívio de amigos,
Muitos já dormem em seus jazigos.
Mas nem o consolo das interações possíveis
Cobrem a plenitude das presenças visíveis.

Sofri grave mutilação intelectual,
Que além de me tirar o jornal
Santuário de inata vocação
Tirou-me também a leitura e a escrita
Foi completo nessa desdita,
Pois sangrou cérebro e coração.

Deixaram de ser para mim ruas e avenidas
Correntes sanguíneas da cidade
Agora são ínvios caminhos que na verdade
Barram os meus passos, vedam as suas saídas,
Fazem-me sentir sozinho e sem abrigo
Como se estivesse em terreno inimigo.

Vedam-me a beleza das mulheres e as pinturas
Das esculturas e das arquiteturas.
E perdi não só as obras primas da Natureza
Mas também as dos gênios cuja grandeza
Lhes permite através da arte extrair a
Sua mais impressiva parte.

Meus olhos adultos nunca choraram
Sequer nesta rota da própria despedida
É que cedo as suas lágrimas secaram
Faltaram assim à missão prometida
Já não sinalizam a dor e a emoção
E só fazem crescer a minha mortificação.

Este Balanço de Perdas sem remédio,
Não foi só de fracassos, não,
Pois tive fartos ganhos de tédio,
De angústia, amargura e solidão.

2ª Parte: Visão Interior

Não existe visão perdida
Mas apenas transferida,
Os olhos trocam a cena a céu aberto
Por algo que se encontra muito perto.

Dentro de nós trazemos bem guardado,
Como se estivesse adormecido,
Resíduos de um vasto acervo repartido
Entre o já vivido e o ainda sonhado.

Muito do há tempos decomposto,
Muitos personagens já sem rosto,
Muitas imagens já esmaecidas
Somos depositários de sobras e feridas.

E há os sentimentos aprisionados
Nos cárceres do erro, da culpa
E das fraquezas
Que praticamos pela vida descuidada.

A visão interior já não enxerga o que somos
Vai então em busca do que já fomos,
Desce do final da construção
Para encontrar o que saiu do chão.

Mas não fomos apenas um só,
Fomos diversos,
Tanto no perfil como na essência
E agora os moldes até então imersos
Exigem uma variada consciência.

Somos muitos e essa farta galeria
Que criamos de heróis e de vilões
Só nos mostra a aguda assimetria
Que marcou as nossas direções
Impedindo nosso íntimo tribunal
De melhor decidir entre o bem e o mal.

São tantos testemunhos encharcados de sentimentos
De culpa e arrependimento que é
Fatal o reconhecimento
De que já nascemos réus e condenados.

Sonhos desfeitos, esperanças mortas
Remorsos por ações e omissões não consoladas
A galeria de desmanches abre suas portas
E exibe suas obras destroçadas.

E as brasas do amor, o fogo das paixões
Em cinzas tudo se terá transformado?
Sequer restou um abrigo de ilusões
Para colher uma aparição do passado?

Muitas lembranças se perdem ao longo das jornadas
Quando outras se agarram às próprias feridas
Fácil é reter os mortos nas suas moradas
Difícil é negar-lhes a memória das vivências partidas.

E as alegrias da infância,
Onde estão
Procuro sentir seus reflexos,
Em vão.

Não deixaram o mínimo vestígio
De sua passagem de álacre, fastígio
Por que as abandonamos?
Por que não as entesouramos no recesso do coração?

Vaidade, orgulho, egoísmo, opressão,
Inclemência, crueldade, rancores e hipocrisias,
Esses fantasmas passaram a promotores de acusação
Quando antes eram os réus de nossas vilanias.
A visão interior, sim, é uma fácil opção,
Um outro mundo.

No entanto, para a alma conturbada,
A cena cavernosa do nosso eu profundo
Apenas reflete os travos da jornada
Que nos cabe cumprir na senda calcinada.

Ver anterior


Música de fundo em arquivo MID (experimental):
"Feelings", Morris Albert
Nota para a seqüência Midi: *****

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Belo Horizonte, 25 fevereiro, 2012

Poesia