Dois ou três
almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida"
Enviado por Isolda Harris, Fortaleza-CE
Por
Caio Fernando Abreu
Publicado no jornal "O Estado
de S. Paulo"
22 abril, 1986
Há alguns dias, Deus -ou
isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus-,
enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de
amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma
pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar
e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer
ou não querer - eu já estava lá dentro.
E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal -
não aconteceu qualquer intimidade dessas que você
certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada.
Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos
disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha
vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida".
De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as
toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas
de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente
esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia,
eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia
protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos
desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada
de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro
do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da
outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa,
e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você
não come açúcar, ah você não
bebe uísque, ah você é do signo de Libra.
Traçando esboços, os dois. Tateando traços
difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele
espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais
sair daquele colo quente que é ter uma face para outra
pessoa que também tem uma face para você, no meio
da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando
o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho
obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação"
na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam
comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua
infância impossível". Cito de memória,
não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva,
sentada num degrau às três da tarde, com um cão
basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára.
Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se
vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não
queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir
vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não.
A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por
si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu
estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir.
Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou
descuidado, também - em pequenas epifanias. Miudinhas,
quase pífias revelações de Deus feito jóias
encravadas no dia-a-dia.
Era isso aquela outra
vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha
opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava:
uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância,
a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória
de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes
de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos.
Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas,
vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo
esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido,
e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto
tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça,
agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de
dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa
pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço
a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio,
então. E quase paro de sentir fome.
Consumo, logo
existo
Enviado por Vitor Buaiz, Vitória-ES
Por
Frei Betto, escritor, autor de Típicos tipos
perfis literários (A Girafa), entre outros livros
13 outubro, 2006
Ao visitar em agosto a admirável
obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o
contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não
conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão,
frutas e hortaliças. Quem trouxe a fome foi a geladeira,
disse. O eletrodoméstico impôs à família
a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.
A economia de mercado, centrada
no lucro e não nos direitos da população,
nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico
da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a
que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.
É próprio do humano
e nisso também nos diferenciamos dos animais
manipular o alimento que ingere. A refeição exige
preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório
culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.
A ingestão de alimentos
por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte.
Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia:
sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar
os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de
outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas
indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou
sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.
Marx já havia se dado
conta do peso da geladeira. Nos Manuscritos econômicos
e filosóficos (1844), ele constata que o
valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor
de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não
tem valor para nós. O capitalismo de tal modo desumaniza
que já não somos apenas consumidores, somos também
consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos
que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido
ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro
da pobreza e à cultura da exclusão.
Para o povo maori da Nova Zelândia
cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades
tradicionais de África também se encontra essa
interação matéria-espírito. Ora,
se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore
ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém.
Mas quantos de nós não cultuam o próprio
carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?
Assim como um objeto se associa
a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo
o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não
se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire
um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas
um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa
possível, porém se traz a assinatura de um famoso
estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela
Somos consumidos pelas mercadorias
na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que
delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção,
a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos
objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando
neles tocamos. E se somos privados desse privilégio,
o sentimento de exclusão causa frustração,
depressão, infelicidade.
Não importa que a pessoa
seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é
alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela
se torna também objeto, confundida com seus apetrechos
e tudo mais que carrega nela mas não é ela: bens,
cifrões, cargos etc.
Comércio deriva de com
mercê, com troca. Hoje as relações
de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não
mais mediatizadas pelas pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco,
a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador,
e também constituíam o espaço das relações
de vizinhança, como ainda ocorre na feira.
Agora o supermercado suprime
a presença humana. Lá está a gôndola
abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração
da falta de convívio é compensada pelo consumo
supérfluo. Nada poderia ser maior que a sedução
diz Jean Baudrillard nem mesmo a ordem que
a destrói. E a sedução ganha seu
supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o
consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que
deseja.
Vou com freqüência
a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar
os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam
indagando se necessito algo. Não, obrigado. Estou
apenas fazendo um passeio socrático, respondo.
Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era
um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo.
Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas.
E, assediado por vendedores como vocês, respondia: Estou
apenas observando quanta coisa existe de que não preciso
para ser feliz.
Traição no interior
de Minas
Enviado por Argante Batarello Filho
Autoria
desconhecida
26 julho, 2007
Zé Toinho, no leito de
morte, decidiu ter uma conversa definitiva com sua companheira
de toda uma vida sobre fidelidade:
- Muié, pode falá sem medo...já vô
morrê mess e prifiro sabê tudim direitim... Ocê
arguma veiz traiu eu?
- Ô Zé, num fala dessas coisa que eu tenho vergonha...
- Pode falá muié....
- Quero não...
- Fala muié, disimbucha...
- Mió dexá pra lá, Zé
- Vai, conta...
- Queto Zé, morre em paz...
Depois de muita insistência
ela resolveu abrir o jogo:
- Tá bão Zé, vou contá, mais num
si responsabilizo...
- Pó contá.
- Ói Zé, traí sim, mas foi só trêis
veiz.
- Intão conta sô! Trêis veiz nessa vida toda
até qui num foi muito!
- A primera foi quando cê foi demitido daqueli imprego
qui ce brigou cum chefe.
- Ué, mas eu fui adimitido di novo logo dispôis
sô.
- Pois é Zé...eu fui lá cunversá
cum ele, acabei dano pra ele e ele ti contratô di vorta.
- Ah, muié, cê foi muito boa cumigo...essa traição
num dá nem pra levá mar, foi pela necessidade
da nossa famía. Tá perdoada. E a segunda?
- Lembra quando cê foi preso pru modi daquele furdunço
que cê prontô na venda?
- Lembro muié, mas num fiquei nem meio dia na cadeia.
- Pois é Zé...eu fui lá cunversá
cum delegado e acabei dano pra ele ti sortá.
- Ê muié, isso nem conta também não,
a carsa foi justa...imagina ficá preso lá um tempão.
Ocê nem me traiu, foi pela nossa famía e pela minha
liberdade, uai. E a úrtima?
- Lembra quando cê si candidatô pra vereadô?
- Lembro muié...quase me elegeru.
- Pois é... eu qui consegui aqueles 2.752 voto...
Edição
anterior
Música
de fundo em arquivo MID (experimental):
"Feito de oração", de Noel Rosa e Vadico
Seqüência MIDI: Hiram Araújo Lima
Nota para a seqüência MIDI: *****
Inspire-se.
Faça sua crônica

|
Segundo o Aurélio,
crônica é "a narração
histórica ou registro de fatos comuns, feitos por
ordem cronológica. Genealogia de família
nobre. Pequeno conto de enredo indeterminado".
No jornalismo é redigido de forma livre e pessoal,
e tem como temas fatos ou idéias da atualidade,
de teor artístico, político, esportivo etc.,
ou simplesmente relativos à vida cotidiana.
É também uma seção ou coluna
(revista ou jornal) consagrada a um assunto especializado.
O conjunto das notícias ou rumores relativos a
determinado assunto.
Portanto,
faça a sua crônica.
Envie para o
Jornal
dos Amigos.
|
Participe
do Jornal
dos Amigos, cada
vez mais um jornal cidadão
O Jornal dos
Amigos agradece a seus colaboradores e incentiva os leitores
a enviarem textos, fotos ou ilustrações com sugestões
de idéias, artigos, poesias, crônicas, amenidades,
anedotas, receitas culinárias, casos interessantes, qualquer
coisa que possa interessar seus amigos. Identifique-se com nome,
cidade onde reside e cite autoria. Escreva para o e-mail:

Se
o conteúdo estiver de acordo com a linha editorial do
jornal, será publicado.
Não esqueça de citar seu nome, a cidade de origem
e a fonte da informação.
Solicitamos
a nossos colaboradores que, ao enviarem seus textos, retirem
as "flechas", isto é, limpem os textos daquelas
"sujeiras" de reenvio do e-mail. Isso facilita bastante
para nós na edição.
Início
da página
www.jornaldosamigos.com.br